"Fonoaudiologia é uma arte que merece ser mais amplamente conhecida. Você não pode imaginar as acrobacias que sua língua mecanicamente executa para produzir todos os sons da linguagem”, Jean Dominique Bauby, foi Editor Chefe da Revista ELLE em Paris, após ter um AVE e precisar de tratamento fonoaudiológico.

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sábado, 31 de janeiro de 2009

O Escafândro e a Borboleta




Gostaria de indicar a leitura do livro francês O Escafandro e a Borboleta. Escrito pelo então editor da revista francesa Elle, Jean-Dominique Bauby, o livro já recebeu diversos prêmios, inclusive de livro internacional mais vendido nos Estados Unidos. Trata-se do testemunho de Bauby diante de seu quadro neurológico; ele foi acometido por um acidente vascular encefálico (AVE)(1) aos 43 anos de idade. Como sequela, ele se tornou portador da “locked in syndrome”. O quadro é caracterizado por quadriplegia (2) e pela preservação da capacidade intelectual do paciente, que se mantém plenamente consciente. A “locked in syndrome”, também conhecida no Brasil como “Síndrome do Encarceramento”, é assim denominada para descrever que o paciente apresenta-se aprisionado dentro de seu próprio corpo, sem poder se mover ou falar.

Bauby aprendeu a se expressar com a ajuda de um código de comunicação desenvolvido por sua fonoaudióloga. Por ordem de uso na língua francesa, o alfabeto foi reorganizado da seguinte maneira: E S A R I N T U L O M D P C F B V H G J Q Z Y X K W. Com a ajuda de um emissor, que era muitas vezes o próprio receptor da mensagem, o alfabeto era assim soletrado para Bauby até que ele indicasse com o piscar do olho, um dos poucos movimentos preservados, qual letra queria usar para formar a palavra almejada. Por exemplo, se Bauby quisesse o nome da revista que ele trabalhou, ele iria piscar quando a letra E fosse falada pelo emissor. Em seguida, o emissor iria soletrar o alfabeto novamente. Bauby iria piscar quando a letra L fosse falada. Novamente o alfabeto seria soletrado e ele iria piscar quando a letra L fosse falada denovo. Restando apenas o E, ele iria piscar logo que o emissor começasse a soletrar o alfabeto novamente. Aí temos a formação da palavra ELLE. Com o passar do tempo, os receptores da mensagem já conseguiam completar o sufixo de muitas palavras automaticamente, e, mais uma vez utilizando códigos baseados no piscar do olho esquerdo, Bauby iria confirmar Sim ou Não.

Complicado? Um pouco, mas esse sistema levou Bauby a se comunicar com o mundo inteiro e compartilhar sua experiência de vida escrevendo o livro O Escafandro e a Borboleta. Ele faz referência ao trabalho realizado pela fonoaudióloga com admiração e gratidão. Existe um capítulo inteiro dedicado à Sandrine, a fonoaudióloga, também denominada por ele de anjo guardião. Ele diz sobre a Fonoaudiologia, “é uma arte que merece ser mais amplamente conhecida. Você não pode imaginar as acrobacias que sua língua mecanicamente executa para produzir todos os sons da linguagem”.

Nos casos de apraxia(4), realizar acrobacias com a língua pode ser possível novamente graças à plasticidade cerebral e com a realização de exercícios fonoarticulatórios miofuncionais orientados pelo fonoaudiólogo. Objetivar a reabilitação da fala, entretanto, não é uma meta atingível para todos. Possibilitar um meio de comunicação efetiva para o paciente deve ser tomado como o objetivo geral da fonoterapia; a partir daí encontramos os sistemas de comunicação alternativa como ferramentas aliadas ao processo de reabilitação, principalmente o uso de pranchas com símbolos pictográficos.

Outras passagens que me chamaram atenção enquanto Fonoaudióloga foi quando Bauby descreveu seu quadro disfágico (3). Coloco aqui uma passagem representando os sentimentos dele diante da disfagia: “Bon apeptit! – era o jeito dele (o enfermeiro ao deixar o quarto) me dizer “te vejo amanhã”. E, claro, me desejar bom apetite é quase a mesma coisa que me desejar “Feliz Natal” no dia 15 de Agosto, ou dizer “Boa noite” em plena luz do dia. Nos últimos oito meses, eu tenho engolido nada mais do que alguma gotas de água saborizada de limão e meia colher de sopa de iogurte, do qual gorgolejo ruidosamente pela minha traqueia. O teste de deglutição, como eles grandiosamente chamam esse banquê – não foi bem sucedido. Mas não vou me alarmar: Eu não estou faminto. Por meio de um tubo enfiado no meu estômago, dois ou três pacotes de um fluido amarronsado garante minhas necessidades calóricas diárias. Por prazer, eu tenho tornado minhas vívidas memórias dos sabores e cheiros, numa incansável reserva de sensações.” Interessante também notar que o tratamento de disfagia, de acordo com o livro, foi então realizado pela Terapeuta Ocupacional. Aqui fica um momento para refletir sobre as diferenças encontradas na distribuição de responsabilidades entre profissionais no Brasil e na França.

Tantas outras passagens são valiosas para se fazer uma reflexão sobre o valor da vida e do significado de felicidade, que podem ser encontradados no próprio cotidiano ou na habilidade de executar funções essenciais do corpo como comer, ouvir, falar, e andar. Infelizmente, muitos são os que aprendem a dar valor a vida apenas depois de uma tragédia.

A história de Bauby pode ser também conferida em versão visual. O autor teve sua história contada no filme que leva o mesmo nome do livro. O filme O Escafandro e a Borboleta recebeu várias indicações ao Óscar e ganhou, dentre outros prêmios, dois Globos de Ouro.




(1) diagnóstico de AVE é popularmente conhecido como derrame.
(2) Acometimento definitivo da habilidade motora do corpo, da cabeça aos pés.
(3) É um distúrbio da deglutição no qual o portador é privado de alimentar-se via oral de maneira segura. podendo, por isso, se asfixiar ou comprometer a integridade funcional dos pulmões. Este sintoma é característico de patologias diversas, dentre elas Alzheimer, Esclerose Lateral Amiotrófica, Parkinson, ou uma sequela de acidentes vasculares, traumatismos cranianos, câncer, e ainda é um quadro comum em bebês prematuros ou crianças acometidas com paralisia cerebral.
(4) Diz-se das alterações ou perda da função articulatória da fala secundária a lesões cerebrais.